quarta-feira, 12 de agosto de 2015

SOU O JESUS CRISTO DO RUM [A BARBA]

-

Então eu estava muito nervoso. Era noite. Daqueles dias cansativos que você demora mais pra voltar pra casa que o período todo de trabalho. E o relógio te informa que em algumas horas você já precisará estar de pé e acordado novamente para ir trabalhar. Só que você não quer dormir. Você quer aproveitar a noite. Olha pela janela e vê a lua que te convida a beber e se divertir. Mas isso é só para quem tem direito. Nós trabalhadores não podemos. Nós, telefonistas, pedreiros, balconistas, eletricistas, encanadores, professores, vendedores, motoristas, lavadores de carros, limpadores de vidraças, atendentes, expositores, estoquistas, dentre todas as outras coisas, nós não temos este direito. Nós apenas dormimos e acordamos e trabalhamos, pois o mundo precisa de nós. O mercado e a economia precisam de nós. Inclusive aqueles que têm o direito de beber numa noite dessas, no meio da semana, eles também precisam de nós. E eu estava lá, em frente ao espelho, vendo meus olhos cansados de acordar quase sem dormir, querendo sair e me divertir sem poder. Mas confesso que antes de chegar em casa passei no boteco e pedi duas doses. Da forte. Por este motivo, talvez, eu quisesse trocar a janta pelo gargalo de uma boa cerveja gelada. Eu disse uma?

Um calor de sentir-se sujo. Duas doses no estômago depois de um dia cansativo e já me sinto poderoso. Quase como quando ouço The Doors no último volume. Olho no espelho e sou só sobrancelhas e bigode e barba. O cabelo já passa da hora de cortar e sinto calor. Lembro-me que escondido na cômoda, para as horas de emergência, tenho um meio litro de rum pela metade. Já ajuda em alguma coisa. Para fazer durar mais adiciono em cada dose dois dedos d'água. De meio faço quase um inteiro. É o milagre da multiplicação. "Sou o Jesus Cristo do rum", eu grito sem me importar com os vizinhos. Um pirata com a barba ruiva tomando rum como quem bebe água. Mais uma dose e agora fico nu para suportar o calor, mas ainda não é suficiente. Meu rosto não faz questão de esconder as marcas do tempo e dos incontáveis porres. Das noites sem dormir. Dos desamores. Há muito que contar em cada ruga, cada cravo, cada pelo de barba. E a barba? Enorme, com pelos eriçados, rebeldes, precisando aparar, mas que tempo tenho? Quando minhas horas de descanso reservam-se para dormir e beber e escrever. Algo me incomoda e a barba pode ser quem vai pagar o pato. Então entre o cigarro aceso e mais uma dose de rum eu acho a tesoura e começo a cortar a barba. A cada chumaço de barba largada no lavatório é um pouco de sofrimento que vai pelo ralo. Leva tempo para manter uma barba deste tamanho. Porém, não mais tempo que economizei quando optei por não perder tempo fazendo a barba.

A verdade é que de lua, como sou, por vezes preciso de uma grande mudança em minha rotina para sentir-me vivo. Vivo e ativo. Vivo e útil. E ainda tem a garota do Bourbon que permanece preenchendo meus finais de semana. Uma linda esta garota. De uma paciência ímpar. Também pudera, para me aturar, somente tendo uma paciência de monge tibetano, mas ao invés disso, ela é descendente de nordestinos mesmo, talvez seja isso. Além de paciente ela é quase tão preguiçosa quanto eu, logo, não se importa de ficar deitada tomando cerveja, falando sobre qualquer coisa e transando.

Não existe muito mais o que se possa querer numa garota quando esta não reclama de seus cigarros, sua vontade incontrolável de algo alcoólico e seu vício em sexo, dito isso, por vezes eu abro mão de meu casulo para levá-la em lugares que queira ir, afinal, quando se está com uma garota como ela é preciso abrir mão de algumas coisas para mantê-la por perto. É uma via de duas mãos. Não se pode viver sem abrir mão de coisas. Abri-se mão da cerveja importada de trigo para poder investir em quantidade de cervejas nacionais e assim poder comprar garrafas que vão te deixar suficientemente bêbado. Abre-se mão, por vezes, da garrafa de Bourbon importado para poder tomar um bom café da manhã a cada três dias de ressacas consecutivas. Abre-se mão de comer em restaurantes boca-de-porco, que servem comida como quem serve para um batalhão, com quase um porco inteiro frito em seu prato clamando para ser saboreado com as mãos para poder impressionar uma garota num restaurante que serve comida como se fosse alpiste, com pratos decorados como aquela tia perua. Vivemos abrindo mão de coisas esperando conseguir outras, porque ainda somos daqueles que têm que escolher entre dormir ou aceitar o convite da lua que nos chama para beber e ficar bêbado e vomitar metade do que bebemos para poder beber mais e não lembrar do que fizemos na noite passada. Nós ainda somos os telefonistas, pedreiros, balconistas, eletricistas, encanadores, professores, vendedores, motoristas, lavadores de carros, limpadores de vidraças, atendentes, expositores, estoquistas, faxineiros, porteiros, zeladores, carteiros, ajudantes, auxiliares... E continuaremos até que a morte nos convide para dançar.



Bento.

-

Nenhum comentário: