segunda-feira, 16 de julho de 2018

GOTAS DE SANGUE REPOUSAM EM MINHAS BOTAS PRETAS ep2


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Imagem de Apollonia Saintclair


Finalmente é segunda feira e o celular desperta freneticamente até que eu o escuto. Abro um dos olhos apenas para apertar a opção soneca e repito isso várias vezes até que acordo finalmente. Preferia estar morto, mas tenho que trabalhar. As contas não serão pagas sozinhas e os problemas no escritório não serão resolvidos sozinho.
Primeiro o cigarro como de costume. Me apresso o máximo possível para fazer o café? Claro que não. Não me arrisco à levantar da cama antes de terminar o primeiro cigarro. Enquanto isso penso em dezenas de motivos para não ir trabalhar e nenhum deles me convence.
No banheiro descarrego todo o álcool que bebi há dias com certa dificuldade já que o pau está tão duro quanto um pedaço de madeira. Chega a doer e por isso decidi terminar na pia para facilitar. Já estou atrasado antes mesmo de começar e preciso fazer café.
Fico me perguntando por que afinal eu já não faço café antes de dormir para que já o tenha pronto quando acordar e chego a conclusão que de noite estou bêbado e só consigo pensar se tem ou não álcool suficiente para alimentar meu vício.

Café pronto, volto ao banheiro para beber e fumar e pensar na vida. Na verdade não há muito a ser feito exceto ir vivendo os dias conforme o Destino nos apresenta. Todas as conversas inúteis, as amizades falsas, os mendigos pedindo esmolas. Todos os olhares de escanteio por causa de um sapato diferente, um penteado mal arrumado, um pelo na barba fora do lugar. As pessoas mais estranhas parecem comum para outras e isso funciona também com ações e todos fingimos sermos educados em busca de aprovação e eu não sou diferente. Não para buscar aprovação, mas para não levantar suspeitas, já que no dia anterior deixei quatro cadáveres para trás. Assim que saio do banho ouço rádios de polícia na minha porta e vou olhar pela janela. Na verdade estão em frente a casa do vizinho. Alguém não voltou para casa naquele domingo. Ouço os policiais comentando sobre a cena. Palavras como banho, sangue, massacre parecem querer erotizar a coisa toda. Porém são só pessoas, mortas, bem como animais são mortos em abatedouros todos os dias e ninguém dá a mínima. Não vejo como somos tão diferentes deles. Fedemos e matamos tanto quanto. Enfim chegam à minha casa perguntando se ouvi ou vi algo e nego dizendo que cheguei tarde no sábado e passei o domingo dormindo. O que não é de todo uma inverdade. O policial parece compreender já que está com uma cara de ressaca tão incriminadora quanto a minha. Muito simpático para um policial. Não quis esticar muito o assunto talvez pelo meu roupão de banho ser rosa com grandes flores lilás. Não o culpo, mas o roupão era de uma garota que esqueceu ao partir da minha casa. Peço um cigarro e ele tem. Só não é dos meus. Pena. O meu estava acabando e antes de nos despedimos ele pergunta como eram os vizinhos ou se eu havia presenciado alguma briga entre o casal. Digo que não pois não fico muito em casa já que estou sempre trabalhando, por fim entro e vou me vestir.
Muitos policiais, muito barulho. Pessoas amontoando-se na rua para tentar ver alguma coisa. Um ou dois carros da imprensa, mas nada demais. Só mais um crime banal na cidade grande. Cada vez mais as pessoas estão habituadas à violência e sangue e crimes e famílias inteiras matando-se por motivos fúteis. Crimes passionais, crimes por motivos mesquinhos e tudo o mais. Ninguém se importa, só querem ver, saber para poder ter assunto no almoço com o pessoal do trabalho, postar no Facebook ou YouTube. Mas na verdade, ninguém se importa realmente que dois casais morreram assassinados num almoço de domingo. Um simples almoço de domingo. A sociedade está calejada de crimes ediondos tão ou mais devastadores que este. Nem morte de crianças impacta esta geração. E eu sigo andando pela rua à caminho do trabalho.
Meus cigarros finalmente acabam e acho melhor não parar na padaria perto de casa. Muitos policiais me deixam nervoso e a segunda feira mais a ressaca já mexem demais com meus nervos. Continuo andando até um mercadinho e peço minha marca favorita. Só temos Eight, ela diz. Com um sorriso simpático que me dá nojo. Sorrisos simpáticos forçam você a devolvê-lo com mais simpatia e eu já sou obrigado a trabalhar e conviver com pessoas que eu não gosto, sorrir para elas é sacrificante para mim. Pergunto se não tem outra marca, ela diz que não, mas que aqueles cigarros importados ilegalmente do Paraguai são ótimos também. Eu estou prestes a sair com sua negativa, mas depois de querer me oferecer cigarros ilegais, que sonegam impostos, que não geram empregos, que matam nossa economia, sem falar na saúde de quem os consome, foi praticamente como cagar na minha cara e querer que eu agradeça depois. Sempre com aquele sorriso simpático de merda colado em seu rosto enrugado de quem abriu um mercadinho para ajudar na aposentadoria.

Decidi colocar meu sorriso mais simpático no rosto e digo que vou aceitar sua sugestão e assim que virou-se acerto o lado de sua cabeça com a máquina de cartões. Ela cai para o lado como um presunto gordo e velho. Dou a volta no caixa e passo a pisar em seu rosto com minha bota de solado militar. Uma, duas, três... Até que sinto quebrar algo como a casca de um ovo quebra ao ir para frigideira, então paro. Satisfeito, mas com uma puta vontade de fumar. Limpo a sola da bota na calça da velha até ouvir um barulho vindo do fundo do mercado. Um rato escondendo-se do gato, estava satisfeito e calmo, mas não poderia deixar ninguém para trás. Seria injusto com a velha e comigo. Na geladeira pego uma garrafa de cerveja, um bom trago com certeza ajuda qualquer crise de estresse. Geladinha, quase de doer o dente. Me aproximo sem muita pressa, mais um gole e acho o rato. Um garoto, não mais que dezesseis anos, magricela como uma garota se escondendo atrás do balcão de pães e frios. Ele se assusta soltando um grito agudo assim que quebro metade da garrafa no balcão derramando o restante da cerveja. Acho um desperdício jogar fora metade do líquido delicioso principalmente quando é importada, mas são ossos do ofício. Agarro seu cabelo com força pressionando contra os pães e a garrafa corta-lhe a garganta entrando bem fundo enquanto o garoto está abaixado com lágrimas nos olhos. Gotas de sangue repousam em minhas botas pretas. Fácil de limpar. No relógio ao lado dos frios reparo que estou atrasado. Não era um bom dia até eu sair da cama, mas as coisas estão melhorando. Cigarros! Lembro que preciso fumar.
Parto em direção à porta. Fui inconsequente penso. Alguém poderia aparecer nesse ninho de rato e eu ter de acabar com mais um cadáver na conta. Ao passar pelo caixa, reparo, ao lado da caixa registradora, quase não notei. Como sou burro! Ou sortudo. Danadinha, digo ao corpo da velha morta atrás do caixa. Se tivesse falado que era fumante... E ainda mais da minha marca favorita. Pego o maço na caixa registradora, retiro um e foi um trago delicioso. Devolvo o maço. Melhor correr para o trabalho.


Bento.


terça-feira, 12 de junho de 2018

MENSAGEM DE DIA DOS NAMORADOS

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Tem uma coisa em relações que precisa ser dita. Nada é o que parece. Sei, é meio clichê. Chega a parecer título de livro erótico que se vende em banca de jornal. Contudo, eu conheci Bukowski na banca de jornal, logo não julgue sem conhecer antes. Pensando nisso, digo logo, nada é o que parece. Entenda; as pessoas escondem o que não aprovam, ou o que acreditam não ser aprovado pela sociedade e hoje em dia se vive cagando regra sobre o que se é permissível ou não. “Será que aprovam?”. “Será que vou ganhar likes?”. “O que será que vão comentar sobre isso?”. Conceitos são ditados pelas mídias sociais, que basicamente se consiste em velhas que ganharam smartphone de seus filhos sentindo-se culpados por não dedicarem tempo suficiente aos idosos e jovens virgens que não fazem amizades na escola e se sentem poderosos quando online. Aliás, somos todos lindos online, é como Nárnia, poderosos e fodões. Aos olhos alheios, claro. Postamos “cozinhando" e logo imaginam que você é basicamente um Master Chef anônimo, mas você está fritando um ovo com bastante dificuldade. Relações são assim também. Ao olharmos um casal de mãos dadas passeando numa noite quente, com a lua desnuda, logo imaginamos que devem ser o casal mais feliz do mundo. É normal imaginar que todas as pessoas do mundo são mais felizes que você. Contudo, o que você não sabe e provavelmente acontece é que a garota deve chupar o irmão dele apenas por vingança, pois ele já a traiu várias vezes confiando que ela sempre vai perdoar, afinal, já perdoou tantas vezes.

Quando vê um casal saindo do mercado e você olha o cara, de rosto marcado pelo tempo e peito avermelhado à mostra carregando sacolas e o saco de carvão. E sua esposa empurrando um carrinho de bebê num sábado ensolarado logo imagina que será um maravilhoso churrasco em família. Um baita pai, uma mãe exemplar e sua pequena cria abraçados e transbordando amor. O que você pode não saber é que talvez este cara quando fica bêbado espanca a esposa na frente da criança, que ele ainda não sabe, mas não é dele e a esposa tem certeza que o dia que souber ele vai matá-la na porrada. E talvez torcer o pescoço do bebê.

E provavelmente você vomite arco íris ao ver um casal de adolescentes. Tão jovens e com tanta coisa para viver e nesse mundo de tanta tecnologia, informação em abundância e com tanta comunicação instantânea eles escolheram descobrir o mundo juntos. Em par. Ao mesmo tempo que se descobrem juntos. O que você pode não enxerga devido a distância é que existe a possibilidade do garotão se sentir extremamente atraído pela rola do amigo quando estão no vestiário do futebol. Que ele já acordou com a cueca molhada depois de um sonho onde ele se lambuzava com a porra quente escorrendo pelo seu rosto vendo seu amigo satisfazer-se com aquilo. O que você talvez não consiga imaginar é que a garota foi constantemente abusada pelo tio, que divide a casa com sua mãe, herança da avó. Que enquanto sua mãe ia trabalhar o tio vestia as calcinhas da garota e obrigava ela massagear suas partes íntimas. Isso tudo aconteceu durante boa parte da sua infância e agora que cresceu ainda acha que ninguém vai acreditar nela. Por isso ela pensa todos os dias em matar o tio e depois cortar os pulsos, mas ainda não se decidiu se mata o tio com uma martelada na cabeça, ou várias, enquanto aquele vagabundo tira o cochilo da tarde, ou apenas corte o pau dele e enfie em sua boca igualzinho ele fazia quando ela era mais nova.

Para não dizer que não falei de amizades, aquelas mesmas que não passa uma semana sequer sem juras de amor e fotos antigas no Facebook. O que elas não contam é que um torce para o outro permanecer na merda, mais forte que torcem por seu próprio sucesso, afinal, ser um falido de merda em companhia de um amigo é até tolerável. O que dói só de imaginar é continuar um verme e ainda ter que presenciar seu amigo ou amiga arrumando um amor, que sendo feliz e realizado. Amigos para sempre, mesmo que seja na merda.

Tudo é uma questão de ótica. O filme que você viu na adolescência jamais te trará a mesma sensação de antes. Algumas coisas são boas só na primeira vez. A maioria de nós tenta reviver relacionamentos de anos atrás achando que dessa vez dará certo, agora que o tempo fez seu trabalho e ambos então mais maduros e melhores. O que você não sabe é que algumas pessoas apenas não melhoram. Outras ainda pioram e tornam-se desconfiadas e traiçoeiras, talvez o responsável por essa pessoa se tornar assim seja você. Sim, temos grande influência nas pessoas que passam por nossas vidas, mas sempre para pior. Afinal, não é maravilhoso poder fazer um monte de merda e responsabilizar nosso passado ou pessoas que passaram? Só o que não admitimos é nos responsabilizarmos pelo monte de bosta que virou nossa vida. Seria demais para nós. Alguém precisa pagar por isso. Não eu. E você?



Bento.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

O FÍGADO É O MELHOR AMIGO DO HOMEM (Enquanto o quarto está mais vazio que de costume) ep1

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Imagem de Apollonia Saintclair

É domingo e acordo com a baba represada nos fios de barba. Gostaria de dormir um pouco mais. Dormir até de tarde, quando o estômago roncasse tão alto à ponto de acordar os vizinhos. Tão tarde talvez como um personagem de Edgar Allan Poe e só acordar em meu funeral, tendo de unhar a tampa da caixa funerária na esperança de chamar a atenção dos coveiros enquanto reclamam das condições de trabalho e o salário miserável. Ou interromper a discussão da última rodada do futebol quando os nervos estarão ferrenhos em busca de provar que seu time é melhor. Bem, mas quem eu estou querendo enganar? Eu trabalho na segunda e o máximo que consigo é dormir até às dez sendo despertado pela bexiga pressionando a uretra pedindo pelo amor de Deus para ser esvaziada. Os pés gelados como uma lata de cerveja num churrasco. Os olhos ardem ao menor sinal de luz. Por isso uso o tato para achar o maço de cigarros afim de que o primeiro trago do dia ajude no despertar. Acho-o e a luz da chama do isqueiro queima os olhos. A cama está mais vazia que de costume e só por isso ainda tenho parte do lençol cobrindo meu corpo. Não ouço pássaros, nem carros na rua. Apenas o barulho da pressão da panela que provavelmente vem da casa do vizinho e automaticamente imagino o almoço de domingo com pessoas que não se suportam fingindo uma tarde familiar sadia. Escondendo seus segredos e suas angústias para evitar discussões, até que um dos parentes beba demais e fale mais que o necessário, como uma faísca numa fábrica de fogos de artifício. Eu não preciso mais passar por isso, pois minha cama está mais vazia que de costume e é só por isso que bebi sozinho até às duas, ou três da manhã – não me lembro – como se não houvesse amanhã. Então lembro que os cigarros que tenho não vão durar até segunda, que as garrafas que tenho não vão durar até segunda se continuar bebendo neste rítmo e que se não levantar agora pode ser tarde demais para a minha bexiga.

Ao caminho do banheiro, tranço as pernas e agradeço por meu quarto ser estreito à ponto de meus braços abertos alcançar as duas paredes opostas. Reparo que o quarto está mais vazio que de costume, menos roupas, menos sapatos, menos coisas e me apresso para chegar ao banheiro evitando os espelhos, esvazio todo o álcool que meu fígado lutou para filtrar a noite inteira. Com uma das mãos apoiadas na parede acho graça e agradeço secretamente por meu fígado conseguir resistir à noite melhor que eu. Grande amigo eu tenho! E dizem que o cachorro que é o melhor amigo do homem. Quem diz isso é porque nunca matou uma garrafa de Bourbon e sobreviveu para contar história.

Então enquanto vistorio e aprovo o trabalho de meu fígado reparo que o banheiro está mais vazio que de costume. Sem cremes, xampus, sabonetes íntimos, toalhas e cheiro de menstruação. Apenas um pacote de lenço umedecido esquecida acima da caixa de descarga. Enquanto isso ainda sou incomodado pelo fato de que os cigarros não durarão até segunda e lamento o fato que terei de colocar meu par de botas e ver pessoas, falar com pessoas, dar sorrisos falsos e comentar sobre o tempo. Tempo este que olho pelo vitrô do banheiro e vejo que não é dos melhores. É domingo e não há uma sombra sequer. Ainda por cima cai uma garoa tão fina quanto o fio de uma lâmina. Suponho que tão cortante quanto o fio de uma lâmina e é neste momento que me arrependo de não ter comprado mais cigarros no dia anterior. Balanço o pau e dou mais um sorriso de canto de boca pensando que esse não é dos meus maiores arrependimentos. Há piores. Muito piores.

Preciso de café e desta vez terei de fazer eu mesmo, já que minha casa está mais vazia que de costume. Penso se vale o sacrifício de fazer café ou começo o dia continuando o que estava fazendo antes de cair no sono. Por hora, opto pelo café.

Forte e amargo. Não tão diferente quanto gosto dos meus drinques, pois bebemos para esquecer dos problemas, mas não podemos esquecer do sabor da vida. Ouço gargalhadas na casa dos vizinhos e isso me faz despertar do silêncio ensurdecedor. Enquanto ferve a água vou até a vitrola para abafar a alegria da vida alheia. Se eu não te incomodo com minhas aflições, não me venha exibir seu sucesso.

Só o cheiro de café entrando em minhas narinas já me faz despertar ao ponto de voltar a notar que talvez fosse melhor um par de meias para esquentar os pés que agora parecem tão frios quanto peixes mortos no supermercado. Dói ao tentar mexer os dedos para esquenta-los e a água parece preguiçosa ao descer pelo coador de pano levando consigo o café até a garrafa. Espero pacientemente e passo a lembrar do quanto bebi ontem, do quanto bebi antes de ontem e acendo mais um cigarro para esperar e esperar e vejo que a vida não é muito mais que isso. Esperar e esperar. Esperar que a música acabe. Esperar que o ônibus passe. Que o salário caia, que as contas cheguem. Esperar que alguém te ligue, ou pela resposta daquela promoção. Esperar pela nota da prova ou sua vez na fila do banco. Esperar pela mensagem de uma garota ou esperar que as pessoas vejam algo bom em você. Esperar que a vida mude ou que as próximas eleições cheguem. Esperar a estréia de um filme ou que a sexta feira chegue. A vida é muito mais esperar que realmente desfrutar de algo. Então enquanto a água escorre no coador a torneira da cozinha pinga e a garoa lá fora continua e a vida alheia segue e eu me sinto congelado não só pelo frio, mas pelo o tempo que não passa esperando pelo café e talvez eu tenha pegado no sono de novo enquanto espero. Engano meu. Sou despertado de meu devaneio pelo carro do ovo que anuncia mais alto que Sonny Boy Willison ame sua gaita na vitrola. Então meu estômago dá sinal de vida e diz que ovos no café da manhã seriam muito bem vindos, só que eu não vou colocar meus pés gelados nessa garoa fina apenas para satiafazê-lo.

Finalmente café, amargo, contudo forte. Mais um cigarro. Agora John Lee Hooker termina uma canção e ouço mais risadas. Histórias de vida alheia e aquilo me irrita. Misturo um pouco de vodca no café para acordar mais rápido. Penso em lavar o rosto, porém se a água estiver tão gelada quanto meus pés é melhor não. O café quente com sabor de vodca desce pela garganta e arrepia os pelos dos braços. Como o Popeye e seu espinafre. Todo o corpo desperta e se aquece, menos os pés, ainda blocos de gelo. Apelo pelas meias? Ainda não.

Agora os vizinhos além da conversa e gargalhada decidiram colocar música alta com um gosto discutível. Sento-me na beirada da cama como um canceriano sem lar que sou para tomar meu café e fumar meu cigarro desejando que aquele domingo pudesse durar para sempre, porém, sem carro do ovo, sem vizinhos e com os pés quentes. Mas quem eu estou querendo enganar? Eu tenho que acordar cedo na segunda para trabalhar como faço toda semana, independente se minha cama está mais vazia que de costume ou não. Então começo a pensar que todos temos direito de descansar no domingo. Dormir até morrer, mas cientes de que temos de acordar na segunda para morrermos aos poucos em coletivos lotados esperando que o salário caia e que as contas cheguem para esperarmos nas filas dos bancos e mais uma vez sou despertado de meu devaneio por gritos e gargalhadas e barulho de panelas e pratos caindo e talheres em atrito com pratos de porcelanas e de repente me vejo com uma chave Philips do tamanho de meu antibraço presa no elástico de minha calça de moletom tocando a campainha do vizinho e ele não pode ouvir o que digo do lado de fora do portão porque sua música de merda está alta demais. Então ele vem abrir a barreira de madeira, com sua caixa de correspondência pendurada por arames e me dá bom dia com uma lata de cerveja barata na mão. Me convida para entrar. Então sou eu, meus pés gelados e a música horrorosa e eu penso que eu não queria incomodar e digo isso a ele. Eu só queria curtir minhas aflições e agonias em paz enquanto bebia minha vodca com café na esperança de dormir e morrer e ao invés disso sou obrigado a escutar aquelas canções com letras desprezíveis e de duplo sentido. Então ando pelo corredor com meu vizinho à minha frente e decido que alguém precisa pagar por atrapalhar meu domingo. Sendo assim ele é o primeiro. Com a chave Philips acerto-lhe a nuca e a chave passa pelo couro cabeludo e o osso do crânio com mais facilidade que eu imaginava. A primeira serve para ele cair de joelhos em minha frente, com o pé direito gelado calçando um chinelo piso em suas costas para puxar a chave. Nisso um jato de sangue tão quente quanto o café acerta-me o peito manchando minha camiseta branca. Mais essa ainda, talvez tenha que tomar banho, neste frio. A segunda é só por garantia e estouro seu tímpano com o espeto de aço.
Continuo no corredor e vejo minha vizinha, esposa, responsável pelo cheiro de tempero de feijão que tomava conta de minha narinas fazendo meu estômago colar nas costas. Acerto-lhe o olho esquerdo e seu corpo desfalece escorrendo pela chave como o macarrão que ela fervia escorria pelo garfo. Na mesa, mais um casal, que congelou ao ver o rosto da anfitriã coberto de sangue brilhante e escuro. Belisco a carne semi assada na forma esperando as batatas e sinto uma dorzinha no dente. A mulher clama por Deus. O homem decide se mexer e pega a faca ao lado do prato tentando se proteger mais que proteger a mulher. Sinto que a carne ainda está meio dura e mastigo com firmeza, mais dor no dente. Pego a panela com água e macarrão e arremesso em sua direção. Na mesma hora ele cai no chão se debatendo de dor. Sua pele parece descolar do osso como frango frito. A mulher levanta de supetão e reza. Me amaldiçoa. Sua mão em meu peito tenta me afastar em vão. Acerto-lhe abaixo do queixo com força e vejo a ponta da chave Philips sair na parte de cima de sua cabeça desmanchando seu penteado. Parte do couro cabeludo na ponta da chave. Seus olhos apagados me encaram. Com a mão em seu pescoço apertando-lhe contra o armário cheio de louças combinando com aquelas que estavam à mesa retiro a chave. O sangue escorre pelo seu decote. Entro na sala e desligo a música finalmente. De fundo escuto minha vitrola rolando Mustang Sally e sinto paz.

Volto para meu quarto e ao término da música finalmente sou capaz de ouvir a agulha encontrando todos os arranhões do vinil. Com a camiseta suja limpo o meio dos dedos sujos de sangue. Por fim, visto uma nova camiseta, coloco um par de meias nos pés e agora eles estão quentes como pães recém saídos do forno. Finalmente um domingo feliz. Mais uma dose de café. A vida é boa. Se souber aproveita-la.



Bento.